domingo, 15 de julho de 2012

A loucura e seus tratamentos


Quero falar aqui, de uma forma abreviada, sobre a loucura. Como foi vista e tratada no decorrer dos tempos. Mas uma vez que a loucura representa o descompromisso com todo e qualquer padrão preestabelecido, tiro vantagem disto, fazendo de uma forma diferente. Acredito na superioridade do depoimento pessoal sobre o simples relato dos fatos, optei por ouvir o que cada um de nossos loucos tem a nos dizer, pessoalmente, a respeito do que passaram, no decorrer dos tempos...
Na antiguidade, a vida livre e errante do louco emprestava-lhe algo de divino. Acreditava-se que tinha a sabedoria, o poder da profecia e o dom da adivinhação. Essa crença em seu poder e domínio sobre a verdade faziam com que os reis os trouxessem para junto de si, transformando-os em bobos da corte, sob pretexto da comicidade, que mascarava o verdadeiro propósito de usá-lo como conselheiro, e, ao mesmo tempo, como porta voz das verdades que o próprio rei não poderia dizer. Tudo o que dizia era tido como piada, e, mesmo assim, angustiava a todos. Mas, se alguma de suas verdades pusesse em risco o poder e a riqueza dos reis... Lá vem a multidão

Com pergunta ou com queixa:
- Por que as nuvens não caem?
Porque elas querem subir.
O céu é que não as deixa.

Saem todos assustados,
Com a minha descoberta,
Dando graças pelo céu
Não estar de porta aberta.

Voltaram, eram muitos.
Outra pergunta fizeram:
- Como pode a luz cegar?
Pra que enxerguemos no escuro,
E guiemos os que erram.

Saíram esperançosos,
Sem medo de olhar pro sol,
Pois quando o escuro vier,
Da noite, serão farol.

Preocupado eu estava
Com o exército de formigas,
Que entravam em meus bolsos,
Formando tamanho alvoroço,
Atrás de migalhas antigas.

Não posso falar com ninguém!
Me preocupo com os soldados,
Que, em busca de comida,
Chegam de todos os lados.

Dessa vez, se assustaram,
E correram com o intento
De chegarem em suas casas,
No armário, a sete chaves,
Guardarem seu alimento.

Seguido por toda a corte,
Chega o rei em espavento:
- Quero saber sobre o exército
Que invadirá a cidade em busca de alimento”.

Me levou para o castelo,
Me deu uma boa comida,
Mandou então que eu usasse
Um chapéu cheio de guizos,
E uma roupa colorida.

Em troca da acolhida,
Eu precisava dizer
O que fosse necessário,
Pra os exércitos conter.

Enquanto eu pensava no assunto,
O rei, a estar sempre junto,
Me fazia um pedido:
Que falasse sem parar,
Tudo o que eu pudesse pensar,
E que fosse desmedido.

Eram tantas as risadas
De minhas tolas piadas,
De todos os meus conselhos...
Mas, quando se punham a ir,
Não estavam a sorrir.
Podia-se ver nos espelhos...

O que fazer para conter os exércitos? Deveria responder...

Depois de muito pensar,
E já querendo voltar
Pra antiga liberdade...
Disse ao rei: Há um jeito,
Para desfazer o feito.

E vos salvar majestade!
Bastando que, para isso,
Assuma um compromisso:
Divida sua comida,
Mesmo não achando certo,
Com todo pequeno inseto,
Com toda pequena vida.

O rei achou descabida,
A solução escolhida,
E me julgou traidor.

- Arranquem-lhe a cabeça,
Antes que o sol se aqueça,
Com todo seu esplendor!”

Vão cortar minha cabeça,
Logo que o sol se aqueça,
E ilumine o céu.
Quando ela rolar, poderei
Ouvir, junto com o rei,
Os guizos do meu chapéu...

Na Idade Média, com o poder atribuído à igreja, a loucura era vista como uma espécie de possessão demoníaca. O louco era encarcerado e acorrentado, passando por rituais de exorcismos; amputações de membros, na crença de que ali se abrigava o demônio; e morte na fogueira. A igreja e a nobreza temiam que a loucura subvertesse a ordem instaurada pela inquisição. O louco era merecedor de castigo...

Existe um demônio em mim...
Foi o que me disseram.
Todos o temem, eu não!
Aparece quando eu falo,
Mas vê-lo nunca puderam.

Pensavam que estava no braço,
Então, arrancaram-no fora.
Deve haver um outro espaço,
Que é onde ele está agora.

Liberta-me das correntes,
Demônio que habita em mim!
Por que não fala comigo?
Só fala com quem o teme?
Não me deixes só assim!

Dizem que eu tenho um demônio...
Mas onde? Me digam: onde?
No braço, sei, não era!
Senhor, onde tu te escondes?

Vieram os reis, os soldados...
Os bispos e todo o clero...
Procuraram-no, e nada...
Mas afirmam que está lá.
Encontrem-no - é o que eu espero.

Vão cercá-lo com o fogo.
Talvez ele apareça.
Farei a ele o pedido
Pra que um novo braço cresça.

Gostarei conhecê-lo!
Pois ele me ajudará.
Vão parar de me bater,
Me soltarão das correntes,
Não vão mais me machucar.

Todos me esperam na praça.
E vai começar o jogo!
Pra que meu pai possa vir,
Vão lhe oferecer o fogo.

Ele surgirá das chamas,
E eu, que o abriguei,
Graças ao seu poder,
Deste país, serei rei.

Nada mais posso enxergar...
Todo o fogo já me cerca,
Não consigo respirar...
Me sinto despedaçar.
Ele chegará, na certa!

Eu queria tanto vê-lo,
Mas eu preciso dormir.
Durmo, com ele a dizer:
- Só vou, se você partir!

No renascimento, a loucura carecia de ser categorizada. A reclusão dos loucos era feita junto com os criminosos, ou os leprosos, entre outros. Com a diminuição de instituições de recolhimento, os loucos, então, eram colocados em barcos, para serem enviados a outros portos, ou, muitas vezes, lançados ao mar, de modo a dar-lhes um fim, e poupar a cidade do desconforto de sua convivência...

Aqui estou, e acho que aqui vou ficar.
Estive em tantos lugares...
Nunca tenho porto certo,
Como os piratas nos mares.

Aqui, dizem, há bandidos.
Vou dormir de olho aberto.
Todos aqui já mataram...
Todos aqui já roubaram...
Não quero ninguém por perto!

Me batem, e riem de mim,
E, por me acharem estranho,
Não me dão sua comida.
Se reclamo, mais apanho.

- Aqui não é seu lugar!
Vivem sempre a repetir.
Devo ter um olho aberto,
E o outro pode dormir.

Outro dia, manhãzinha,
Me levaram do lugar,
Porque, enfim, descobriram
Onde eu deveria estar.

Me puseram numa casa,
Com gente enrolada em panos...
Fazia tanto calor...
Mas elas não se importavam,
Se vestiam assim há anos.

Todos fugiam de mim,
Sempre que eu chegava perto...
Será por falta dos panos?
Devo me enrolar por certo!

Saibam! Eu não sou bandido!
- Eu nunca matei ninguém!
Eu fui pra lá, por engano.
Agora, já estou em casa,
Eu quero panos também!

Outro dia, descobri o que vai me acontecer.
Tirarão os meus pedaços
(Vi um deles sem os panos),
Até que não restem traços.

Ninguém vai tocar em mim,
No chão, eu marquei um traço.
Trago comigo uma faca,
Durmo com um olho aberto,
Senão me tiram pedaços.

Me removeram de lá,
Disseram que é pouco, o espaço,
Que eu crio confusão...
E que não sei o que faço.

Me levaram a navegar,
Dentro de um pequeno barco,
Pra em outro porto ancorar.
Mudam sempre meu lugar...
Dessas trocas, estou farto.

Caso não haja algum porto,
Onde possam me deixar,
No meio do oceano,
Eles pensam me lançar.

Eles não sabem o que fazem,
Sempre mudam de ideia...
Mas eu sei o que fazer,
Se tentarem me lançar.
Matarei quem o fizer,
E, aí, terei um lugar!

Para Pinel, a loucura é o castigo da imoralidade. O louco não tem pudor, nem recato. Merece o confinamento. Era preciso isolá-lo, para que servisse como exemplo. Se a ordem é subvertida, a camisa de força, as mordaças, e a lobotomia poderão restabelecê-la. Isolar o louco do mundo da ordem era a forma de tratamento. Surgem os hospícios...

Vejam a que ponto cheguei!
Depois de horríveis suplícios,
Já sabem onde é minha casa:
Fizeram pra mim um hospício.

Meus braços estão amarrados...
Antes, com os criminosos,
Ao menos, podia mover-me,
Mas todos ficavam nervosos...

Tenho a boca amordaçada...
Quando vivi com leprosos,
Ao menos, podia falar,
Mas todos ficavam nervosos...

Até os meus pensamentos,
Dizem que são perigosos.
Portanto, não devo pensar,
Pois, senão, ficam nervosos...

Não me movo, não falo, não penso.
Os dias passam morosos.
Vivo nesse cativeiro,
Pra que não fiquem nervosos...

Minha cabeça abrirão...
E tirarão lá de dentro,
Aquilo que me controla,
Que, dos male,s é o centro.

Então prefiro morrer,
Quero estar a sete palmos...
Tudo será como está,
Mas todos ficarão calmos...

Depois de Pinel... até os dias de hoje, o tratamento dado à loucura passou por um processo dinâmico de mudanças, até que a loucura passasse a ser vista como doença mental. Inicialmente, julga-se com causas orgânicas, onde crendices e técnicas primitivas de tratamento se misturavam. Vesicatórios atrás do pescoço, substâncias herméticas, vomitórios, laxantes... Tudo, na tentativa de extrair os humores. O tempo passa, o homem evolui, e as técnicas são modificadas. O tratamento é humanizado. O doente passa a ser observado, e seu comportamento analisado. A sua reintegração na sociedade constitui a meta principal. Passa a se valorizar a importância de sentir-se útil. Surge a utilização de tratamentos psiquiátricos, psicológicos, terapias ocupacionais, entre outros. Mas a loucura, como um episódio isolado, continua através dos tempos, sendo exatamente a mesma. O mundo “são” é que vem se modificando dia a dia, e, cada vez mais, conseguindo trazer o louco cada vez mais próximo. Ou será que esse mundo, cada vez mais, se aproxima da loucura?...

Já fui sábio, possuído,
Contagioso, imoral,
Morei em castelo, porão,
Em prisão e hospital.
Já perdi cabeça, braço,
Vida e lobo frontal.
Me deram até remédios,
Pra algum mal intestinal.

Posso olhar da janela,
Mesmo assim tenho cautela,
Vejo arrombarem tramela,
Canivete na goela,
Corpo no chão e uma vela,
Matam por uma balela.
Essa vida é uma cela.
Nem sei se ainda quero estar nela.

Devem estar todos loucos,
Não deviam estar soltos.
Sãos, como eu, são poucos.
Trocam pontapés e socos,
Esfarrapados e rotos,
Apesar do bom reboco,
São apenas corpos ocos.

Vida! Que vida mais torta!
Tudo de bom ela corta,
Antes de nascer, aborta.
Nada a vida conforta.
Pra ela, mais nada importa.
A vida deve estar morta.
Preciso trancar a porta,
E cuidar da minha horta.

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