quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O amigo e o retrovisor

Mesmo sabendo que o número de passageiros em busca de condução aumentava generosamente em dias chuvosos como aquele, ele experimentava sempre um intenso distanciamento da vida nesses momentos. Tudo lhe parecia estranho. Seus movimentos e suas respostas ao mundo exterior eram acidamente autômatos. A cada braço estendido, à beira da calçada, seu estômago revirava diante da ideia de se ver obrigado a fazer um mínimo contato direto com o mundo vivente, ao menos para saber o destino da viagem. Sua vontade era circular solitário, até que a chuva, ou o seu coração, parasse - o que acontecesse primeiro. A rotina era sempre a mesma. Respondia ao cumprimento do passageiro com um meio sorriso que se confundia com um forte espasmo facial. Ouvia o endereço de destino, como um cão que escuta os lamentos de seu dono, enquanto olha o trajeto das formigas no quintal. Assim que o carro entrava em movimento, se sentia seguro, graças à cumplicidade da paisagem que capturava o olhar do passageiro. Sua alma partia, então, em direção a algum lugar, que ele nunca soube bem onde era, mas que, quando voltava, trazia na boca o sabor dos séculos, e, nas costas, o peso de todas as palavras resumidas na voz do passageiro perguntando: “Quanto é?”
Teria sido tudo exatamente assim, se, naquele dia, seus olhos não tivessem passado rapidamente pelo retrovisor, antes que sua alma se retirasse para a habitual viagem. Como um soco no estômago, se vira prisioneiro da tempestade de imagens do passado que desfilavam, compondo, desde a infância, a imagem do homem que aparecia no espelho.
Sim, era ele! Seu passageiro fora, durante muitos anos, o seu maior amigo, com que viveu as primeiras perguntas, sofreu as primeiras respostas, trocou abraços, socos, sonhos, segredos, namoradas, e que agora estava ali, no banco de trás de seu táxi, olhando para a rua, com aquela expressão de antepassado.
E se, quando o sinal fechasse, ele virasse para trás, e repetisse a saudação que ambos costumavam usar, quando se encontravam? O amigo entenderia? E se não lembrasse dele? E se o achasse velho e acabado e infeliz? Decididamente, não olharia para trás, não faria a saudação, não se deixaria descobrir pelo amigo, que agora mais parecia uma foto de jornal. Seria suficiente olhá-lo dentro do campo de visão que o retrovisor permitia. Buscou na memória a cena de minutos atrás, quando o amigo acenou para o táxi, em busca de sua imagem de corpo inteiro. Mas lembrou que, naquele momento, tentava suportar as reviravoltas de seu estômago. Nada conseguiria lembrar, pois nada havia visto, a não ser a ameaça da presença de um passageiro no seu carro.
As cenas de sua infância e adolescência passeavam de mãos dadas, no pequeno espaço do retrovisor, que agora já era um imenso palco, onde uma vida de cem anos caberia.
Pelo visto, o amigo estava bem... teria casado? ... com certeza, estava em situação melhor que a de um simples motorista de táxi.... A vontade de abraçar o amigo tomava conta de seus braços. Talvez ele quisesse encontrar nesse abraço, a razão pela qual suas vidas se subtraíram pela distância, no tempo e no espaço. Ou, talvez, quisesse apenas abraçar o amigo, e dizer: “Cara! Seria isso uma chance?”. Mas o amigo não sabia daquele motorista, com quem compartilhara toda a cumplicidade que uma amizade suporta. Será que o amigo ainda sentia o medo do assobio da ventania, acreditando ser chegada do ‘buraco do mundo’, como costumava dizer a portuguesa que vendia cocadas e pipas para a criançada?
E se, na hora de pagar a viagem, o amigo o reconhecesse? Será que iriam pro “Bar do Bardo” tomar cerveja com limão, pra evitar a gripe, por terem pego um temporal, na volta de algum lugar? Ou será que iria apenas cantarolar as teimosas músicas que fizeram, durante o desejo visionário de que um dia seriam uma dupla de sucesso?
Pelos trajes, o amigo devia estar bem de vida, e talvez não tivesse olhar para as lembranças... “Há amizades que não precisam de convivência, nem contato, se preservam por si só. Há outras que sucumbem, se não houver convivência... " Qual teria sido a amizade deles? Sido? Será que não era mais? Vasculhou a memória, tentando lembrar a última vez que pensara no amigo, antes que ele entrasse no seu carro, há minutos atrás. Não conseguia lembrar, parece que o amigo sempre estivera ali, exatamente como um espelho retrovisor, que a gente nem lembra que existe, a não ser quando resolve precisar dele, e não o encontra.
Talvez fosse, aquela, a última chance de ele reencontrar o amigo que sempre estivera lá, e, se ele deixasse passar, nunca mais o reencontraria, e nunca mais ele estaria lá. Então seria melhor fazer a ‘familiar saudação’ ao amigo. Ou, melhor, ele sorriria para o amigo. Sorriria em código. O amigo, com certeza, reconheceria, pois sempre que precisavam se comunicar em público, sem que ninguém reparasse, usavam ‘caras e bocas’ que tinham, todas, significado próprio.
O endereço de destino estava chegando, seu coração parecia que ia saltar pela boca. Nesses últimos minutos, percebeu o quanto tinha envelhecido, e também o quanto se deixou envelhecer. Naquele instante, se sentia um menino pronto para pular o muro da escola e jogar bola, ou um rapaz ansioso por entrar de ‘penetra’ no baile, e dançar com a mais linda garota. Um desfile, cada vez mais rápido, de cenas da sua vida com seu amigo passageiro - passava por sua mente. Chegou a ouvir sons, sentir cheiros, sabores e texturas. Tudo, de uma vez só, se precipitava naquele momento. Despertou com a voz do amigo: - “É logo ali na frente. O prédio azul”.
Ele tinha ainda a mesma voz. E, com certeza, era muito rico (a valer pelo prédio). Talvez, não valesse a pena segurar essa chance. Talvez, não fosse uma chance.
– “Quanto é? “. Olhou para trás. Pegou o dinheiro. – “Pode ficar com o troco”.
Ele também estava bem marcado pelo tempo... Não era o mesmo do retrovisor... Talvez, não fosse tão feliz assim... Talvez, não tivesse filhos...
Despertou para o mundo do nada, com o som da porta batendo. E seguiu em círculos, à espera do que parasse primeiro. A chuva, ou seu coração.
No quarto do zelador do grande prédio azul:
Nossa, meu filho, que dia de merda! Tomei um banho de chuva, tive que negociar meus vales-transporte, pra poder pegar um táxi, e ainda peguei um motorista viado, que me olhou o tempo todo pelo retrovisor, e quase me agarrou, na hora em que fui pagar. Deixei o troco para ele, e me mandei.”

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

INSCRIÇÕES I

Era impressionante o esforço que eu fazia,
Durante o banho,
Para que não saísse a marca de batom,
Cuidadosamente carimbada pelos lábios de minha mãe,
No dorso de minha mão.
Era um ritual só nosso.
Ela se aprontava para o trabalho,
E eu, ainda tão pequena,
Acompanhava todos os seus movimentos,
Com a devoção de um torcedor na arquibancada.
Quando ela estava pronta, pegava minha mão esquerda
(a do coração, dizia)
E, suavemente, ali, selava seus lábios em batom.
Chamávamos isso de
‘Beijinho pra marcar’.
Não se admitia a possibilidade
De minha mãe sair,
Pra onde quer que fosse,
Sem que deixasse registrada
A sua presença em mim,
Através das cores e perfumes
De seus mais variados batons.
Era tão lindo, cheiroso e perfeito o contorno de sua boca...
Essa cumplicidade era de tal
Relevância em minha vida,
Que eu zelava, com fervor religioso,
Para que a marca perdurasse,
Até o momento do retorno de mamãe,
Quando, orgulhosa, eu lhe mostrava
O cuidado que dispensara aos seus lábios.
Na sesta,
Eu deitava com as mãos pra cima,
Segurando o espaldar da cama,
De modo a recordar, mesmo durante o sono,
Que ali havia algo precioso
A ser preservado.
Ao me dar banho, Rutinha já sabia
Da proibição de tocar
Naquela área sagrada do meu corpo.
E creio que,
Por mais respeito aos lábios de mamãe
Do que a mim,
Ela seguia as determinações,
Com obediência canina.
Até hoje,
Quando olho minhas mãos,
Vejo a marca indelével
Da tatuagem feita pelos lábios de mamãe em minha alma.