Quero falar aqui, de
uma forma abreviada, sobre a loucura. Como foi vista e tratada no
decorrer dos tempos. Mas uma vez que a loucura representa o
descompromisso com todo e qualquer padrão preestabelecido, tiro
vantagem disto, fazendo de uma forma diferente. Acredito na
superioridade do depoimento pessoal sobre o simples relato dos fatos,
optei por ouvir o que cada um de nossos loucos tem a nos dizer,
pessoalmente, a respeito do que passaram, no decorrer dos tempos...
Na antiguidade, a
vida livre e errante do louco emprestava-lhe algo de divino.
Acreditava-se que tinha a sabedoria, o poder da profecia e o dom da
adivinhação. Essa crença em seu poder e domínio sobre a verdade
faziam com que os reis os trouxessem para junto de si,
transformando-os em bobos da corte, sob pretexto da comicidade, que
mascarava o verdadeiro propósito de usá-lo como conselheiro, e, ao
mesmo tempo, como porta voz das verdades que o próprio rei não
poderia dizer. Tudo o que dizia era tido como piada, e, mesmo assim,
angustiava a todos. Mas, se alguma de suas verdades pusesse em risco
o poder e a riqueza dos reis... Lá vem a multidão
Com pergunta ou com
queixa:
- Por que as nuvens
não caem?
Porque elas querem
subir.
O céu é que não
as deixa.
Saem todos
assustados,
Com a minha
descoberta,
Dando graças pelo
céu
Não estar de porta
aberta.
Voltaram, eram
muitos.
Outra pergunta
fizeram:
- Como pode a luz
cegar?
Pra que enxerguemos
no escuro,
E guiemos os que
erram.
Saíram
esperançosos,
Sem medo de olhar
pro sol,
Pois quando o escuro
vier,
Da noite, serão
farol.
Preocupado eu estava
Com o exército de
formigas,
Que entravam em meus
bolsos,
Formando tamanho
alvoroço,
Atrás de migalhas
antigas.
Não posso falar com
ninguém!
Me preocupo com os
soldados,
Que, em busca de
comida,
Chegam de todos os
lados.
Dessa vez, se
assustaram,
E correram com o
intento
De chegarem em suas
casas,
No armário, a sete
chaves,
Guardarem seu
alimento.
Seguido por toda a
corte,
Chega o rei em
espavento:
“- Quero saber
sobre o exército
Que invadirá a
cidade em busca de alimento”.
Me levou para o
castelo,
Me deu uma boa
comida,
Mandou então que eu
usasse
Um chapéu cheio de
guizos,
E uma roupa
colorida.
Em troca da
acolhida,
Eu precisava dizer
O que fosse
necessário,
Pra os exércitos
conter.
Enquanto eu pensava
no assunto,
O rei, a estar
sempre junto,
Me fazia um pedido:
Que falasse sem
parar,
Tudo o que eu
pudesse pensar,
E que fosse
desmedido.
Eram tantas as
risadas
De minhas tolas
piadas,
De todos os meus
conselhos...
Mas, quando se
punham a ir,
Não estavam a
sorrir.
Podia-se ver nos
espelhos...
O que fazer para
conter os exércitos? Deveria responder...
Depois de muito
pensar,
E já querendo
voltar
Pra antiga
liberdade...
Disse ao rei: Há um
jeito,
Para desfazer o
feito.
E vos salvar
majestade!
Bastando que, para
isso,
Assuma um
compromisso:
Divida sua comida,
Mesmo não achando
certo,
Com todo pequeno
inseto,
Com toda pequena
vida.
O rei achou
descabida,
A solução
escolhida,
E me julgou traidor.
“- Arranquem-lhe a
cabeça,
Antes que o sol se
aqueça,
Com todo seu
esplendor!”
Vão cortar minha
cabeça,
Logo que o sol se
aqueça,
E ilumine o céu.
Quando ela rolar,
poderei
Ouvir, junto com o
rei,
Os guizos do meu
chapéu...
Na Idade Média, com
o poder atribuído à igreja, a loucura era vista como uma espécie
de possessão demoníaca. O louco era encarcerado e acorrentado,
passando por rituais de exorcismos; amputações de membros, na
crença de que ali se abrigava o demônio; e morte na fogueira. A
igreja e a nobreza temiam que a loucura subvertesse a ordem
instaurada pela inquisição. O louco era merecedor de castigo...
Existe um demônio
em mim...
Foi o que me
disseram.
Todos o temem, eu
não!
Aparece quando eu
falo,
Mas vê-lo nunca
puderam.
Pensavam que estava
no braço,
Então,
arrancaram-no fora.
Deve haver um outro
espaço,
Que é onde ele está
agora.
Liberta-me das
correntes,
Demônio que habita
em mim!
Por que não fala
comigo?
Só fala com quem o
teme?
Não me deixes só
assim!
Dizem que eu tenho
um demônio...
Mas onde? Me digam:
onde?
No braço, sei, não
era!
Senhor, onde tu te
escondes?
Vieram os reis, os
soldados...
Os bispos e todo o
clero...
Procuraram-no, e
nada...
Mas afirmam que está
lá.
Encontrem-no - é o
que eu espero.
Vão cercá-lo com o
fogo.
Talvez ele apareça.
Farei a ele o pedido
Pra que um novo
braço cresça.
Gostarei conhecê-lo!
Pois ele me ajudará.
Vão parar de me
bater,
Me soltarão das
correntes,
Não vão mais me
machucar.
Todos me esperam na
praça.
E vai começar o
jogo!
Pra que meu pai
possa vir,
Vão lhe oferecer o
fogo.
Ele surgirá das
chamas,
E eu, que o
abriguei,
Graças ao seu
poder,
Deste país, serei
rei.
Nada mais posso
enxergar...
Todo o fogo já me
cerca,
Não consigo
respirar...
Me sinto despedaçar.
Ele chegará, na
certa!
Eu queria tanto
vê-lo,
Mas eu preciso
dormir.
Durmo, com ele a
dizer:
- Só vou, se você
partir!
No renascimento, a
loucura carecia de ser categorizada. A reclusão dos loucos era feita
junto com os criminosos, ou os leprosos, entre outros. Com a
diminuição de instituições de recolhimento, os loucos, então,
eram colocados em barcos, para serem enviados a outros portos, ou,
muitas vezes, lançados ao mar, de modo a dar-lhes um fim, e poupar a
cidade do desconforto de sua convivência...
Aqui estou, e acho
que aqui vou ficar.
Estive em tantos
lugares...
Nunca tenho porto
certo,
Como os piratas nos
mares.
Aqui, dizem, há
bandidos.
Vou dormir de olho
aberto.
Todos aqui já
mataram...
Todos aqui já
roubaram...
Não quero ninguém
por perto!
Me batem, e riem de
mim,
E, por me acharem
estranho,
Não me dão sua
comida.
Se reclamo, mais
apanho.
- Aqui não é seu
lugar!
Vivem sempre a
repetir.
Devo ter um olho
aberto,
E o outro pode
dormir.
Outro dia,
manhãzinha,
Me levaram do lugar,
Porque, enfim,
descobriram
Onde eu deveria
estar.
Me puseram numa
casa,
Com gente enrolada
em panos...
Fazia tanto calor...
Mas elas não se
importavam,
Se vestiam assim há
anos.
Todos fugiam de mim,
Sempre que eu
chegava perto...
Será por falta dos
panos?
Devo me enrolar por
certo!
Saibam! Eu não sou
bandido!
- Eu nunca matei
ninguém!
Eu fui pra lá, por
engano.
Agora, já estou em
casa,
Eu quero panos
também!
Outro dia, descobri
o que vai me acontecer.
Tirarão os meus
pedaços
(Vi um deles sem os
panos),
Até que não restem
traços.
Ninguém vai tocar
em mim,
No chão, eu marquei
um traço.
Trago comigo uma
faca,
Durmo com um olho
aberto,
Senão me tiram
pedaços.
Me removeram de lá,
Disseram que é
pouco, o espaço,
Que eu crio
confusão...
E que não sei o que
faço.
Me levaram a
navegar,
Dentro de um pequeno
barco,
Pra em outro porto
ancorar.
Mudam sempre meu
lugar...
Dessas trocas, estou
farto.
Caso não haja algum
porto,
Onde possam me
deixar,
No meio do oceano,
Eles pensam me
lançar.
Eles não sabem o
que fazem,
Sempre mudam de
ideia...
Mas eu sei o que
fazer,
Se tentarem me
lançar.
Matarei quem o
fizer,
E, aí, terei um
lugar!
Para Pinel, a
loucura é o castigo da imoralidade. O louco não tem pudor, nem
recato. Merece o confinamento. Era preciso isolá-lo, para que
servisse como exemplo. Se a ordem é subvertida, a camisa de força,
as mordaças, e a lobotomia poderão restabelecê-la. Isolar o louco
do mundo da ordem era a forma de tratamento. Surgem os hospícios...
Vejam a que ponto
cheguei!
Depois de horríveis
suplícios,
Já sabem onde é
minha casa:
Fizeram pra mim um
hospício.
Meus braços estão
amarrados...
Antes, com os
criminosos,
Ao menos, podia
mover-me,
Mas todos ficavam
nervosos...
Tenho a boca
amordaçada...
Quando vivi com
leprosos,
Ao menos, podia
falar,
Mas todos ficavam
nervosos...
Até os meus
pensamentos,
Dizem que são
perigosos.
Portanto, não devo
pensar,
Pois, senão, ficam
nervosos...
Não me movo, não
falo, não penso.
Os dias passam
morosos.
Vivo nesse
cativeiro,
Pra que não fiquem
nervosos...
Minha cabeça
abrirão...
E tirarão lá de
dentro,
Aquilo que me
controla,
Que, dos male,s é o
centro.
Então prefiro
morrer,
Quero estar a sete
palmos...
Tudo será como
está,
Mas todos ficarão
calmos...
Depois de Pinel...
até os dias de hoje, o tratamento dado à loucura passou por um
processo dinâmico de mudanças, até que a loucura passasse a ser
vista como doença mental. Inicialmente, julga-se com causas
orgânicas, onde crendices e técnicas primitivas de tratamento se
misturavam. Vesicatórios atrás do pescoço, substâncias
herméticas, vomitórios, laxantes... Tudo, na tentativa de extrair
os humores. O tempo passa, o homem evolui, e as técnicas são
modificadas. O tratamento é humanizado. O doente passa a ser
observado, e seu comportamento analisado. A sua reintegração na
sociedade constitui a meta principal. Passa a se valorizar a
importância de sentir-se útil. Surge a utilização de tratamentos
psiquiátricos, psicológicos, terapias ocupacionais, entre outros.
Mas a loucura, como um episódio isolado, continua através dos
tempos, sendo exatamente a mesma. O mundo “são” é que vem se
modificando dia a dia, e, cada vez mais, conseguindo trazer o louco
cada vez mais próximo. Ou será que esse mundo, cada vez mais, se
aproxima da loucura?...
Já fui sábio,
possuído,
Contagioso, imoral,
Morei em castelo,
porão,
Em prisão e
hospital.
Já perdi cabeça,
braço,
Vida e lobo frontal.
Me deram até
remédios,
Pra algum mal
intestinal.
Posso olhar da
janela,
Mesmo assim tenho
cautela,
Vejo arrombarem
tramela,
Canivete na goela,
Corpo no chão e uma
vela,
Matam por uma
balela.
Essa vida é uma
cela.
Nem sei se ainda
quero estar nela.
Devem estar todos
loucos,
Não deviam estar
soltos.
Sãos, como eu, são
poucos.
Trocam pontapés e
socos,
Esfarrapados e
rotos,
Apesar do bom
reboco,
São apenas corpos
ocos.
Vida! Que vida mais
torta!
Tudo de bom ela
corta,
Antes de nascer,
aborta.
Nada a vida
conforta.
Pra ela, mais nada
importa.
A vida deve estar
morta.
Preciso trancar a
porta,
E cuidar da minha
horta.